Sou a que te acompanhou no outro dia de tua formatura, pró resto da vida.
Sou aquela que usava Lee americana número 28 e ainda ficava folgada.
Aquela que roubou o saleiro do restaurante e se assustou quando o garçom veio dar o troco.
A que estudava e namorava em dias inteiros, mesmo sendo de anos diferentes.
A que só acampou uma vez, pra nunca mais, pois gostava de não fazer nada.
Sou a que tomou um porre com duas cervejas, cantou no Pátio de São Pedro, e foi aplaudida.
A que acompanhava a pescar e nunca disse o quanto detestava isso.
A que nunca soube jogar xadrez e que desistiu de tanto tentar.
A dos biquinis mais biquinininhos do mundo, sabendo que isso te matava de raiva.
Sou a que acordava nas madrugadas porque estava com frio, e pedia para me cobrires.
Sou a que, mesmo morrendo de sono, acordava pra fazer teu jantar.
A que deixava bilhetes com batom no espelho do banheiro.
A que subia na mesa pra cantar, sabendo-te por perto pra me defender.
A que tomava gin tónica pra ninguém notar que havia bebido.
Sou aquela de mini-saia e blusa de frente única.
Que usava brincos enormes comprados nas feiras hippies.
Que se equilibrava nos sapatos de saltos escandalosos para tentar ficar de tua altura.
A que casou de vestido de noiva cor de salmão, deixando a família sem saber o que dizer.
Sou a que correu da polícia de salto alto gritando contra a ditadura.
A que subia nas ladeiras de Olinda pra namorar ao por do sol.
A normalista que tinha todos os sonhos do mundo.
Que colocava Guevara na parede da casa de praia do Guarujá.
Que sonhava ser musa do Godard.
Que colocava a família no sofá esperando os dois segundos de fala que aparecia na TV.
Sou a que cozinha tomando vinho, enquanto telefona para Recife, escutando BB King.
Que escutava Chico Buarque, enquanto esperava a hora de namorar.
Sou a que chorou em Chorus Line e riu no Fantasma da Ópera.
A que se emociona com bobagens.
Que dormia no teatro e acordou com Cacilda Lanuza pegando a sua mão.
A que dormiu no chão de um quarto e sala enquanto esperava a mobília.
Sou a que renasceu com todos os amigos e celebrou cada minuto de sua vida.
A que lançou um livro e escutou do filho "mais uma loucura de minha mãe".
-------------
Rosa Pena
==================
Comentário:
Sei que este tem muitos nomes brasileiros, a cronista é brasileira.
Sei que não é igual para todas as mulheres. Há diferenças que facilmente entendemos e poderemos adaptar a nós mesmas; mas o sentido é igual para todas nós.
É uma retrospectiva de vida, passadas as ilusões, na entrada da meia idade.
Quanto fizemos e deixámos de fazer? Quantas loucuras? Valeu a pena? Podemos relembrar e rir de nós mesmas?
Se assim for, podemos levantar a cabeça bem alto, erguer os ombros e dizer ao companheiro:
Shiu! Calado!
Lembras-te daquela que amaste e porque amaste?
Sou eu!
--------------
Laura B. Martins