Repassando uma crónica especial de Ana Suzuki, uma mulher sessentona que nunca perdeu a capacidade de se entregar ao choro e ao riso, tal qual uma criança, embora presa fácil da saudade dos tempos idos.
Juntem-lhe a bondade da alma, a capacidade de se condoer com os problemas alheios, as histórias para crianças que publica, as palestras que faz, de escolinha para escolinha, incentivando à leitura e encontrarão uma mulher especial como poucas, nos dias d'hoje.
A minha homenagem à Ana Suzuki e ao seu «Trem das Onze» com uma estação mesmo à minha porta!
Para a Schyrlei Pinheiro, o meu agradecimento por nos ter aproximado, achando que ficaríamos amigas. Acertou!
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Laura B. Martins
ÀS NOVE EM PONTO
Sempre acompanho o programa que o João Gasparini leva ao ar todas as noites, de segunda a sexta, das oito às dez, através da Rádio Serra Negra.
É um programa alegre, descontraído, intimista como convém a uma cidade pequena, onde todos se conhecem.
Só que, às nove em ponto, o João apresenta um momento de oração, nos moldes católicos. Nesse momento, invariavelmente, eu choro. Um choro morno, sem desespero, de pura saudade, por recuperar na memória alguma coisa de um mundo que eu perdi, e que era muito católico.
"Salve a mãe de Deus e nossa, sem pecado concebida..."
Revejo o oratório de minha avó Laura, o quadro de Santa Luzia, a gravura do anjo da guarda protegendo a menininha que ia cair num precipício. Mamãe rezando à Nossa Senhora Aparecida para que papai voltasse vivo da guerra na Itália. Tia Líbia no Santuário de Santa Terezinha, acendendo velas para iluminar o caminho das almas. Tio Chote assistindo contrito à dança do moçambique. Tia Dita levando-me ao Convento do Carmo para rezar novenas. Enquanto choro, vou revendo outros tios, outras tias, suas devoções.
Naquele mundo devoto, só meu avô Nicolau destoava. Ele dizia:
Não gosto quando dizem que sou um homem bom! Fico com medo de ir para o céu, quando morrer. Se for como na igreja, não vai ter nada do que eu gosto. Já imaginou ficar uma eternidade sem cerveja, sem jogo de bocha, rezando dia e noite no meio daquela velharada beata? Porca miséria!
Quando vovô estava morrendo, um padre foi chamado para ouvir-lhe a última confissão.
Ao sair do quarto, com lágrimas nos olhos, o padre declarou à família:
Acabo de ouvir a confissão de um homem quase santo! Só o Bispo será digno de rezar uma missa por ele...
E de facto o meu avô, um pobre marceneiro, teve sua alma especialmente encomendada pelo Bispo da diocese de Taubaté. Talvez porque tivesse conseguido ser bom pelo gosto de ser bom, sem por isto esperar recompensas na terra ou no céu...
Choro sim, e chorando lembro um trem.
Havia um trem, que todo ano me levava para a casa de meus avós. Era sempre noite quando eu chegava, e meu avô já estava esperando na estação. Era sempre madrugada quando eu ia embora, e meu avô ia té a estação para a despedida. Na curva, quando eu olhava pela janela, ele ainda estava lá, acenando com um lenço branco. Eu chorava, e sabia que ele também estava chorando.
Mas haveria um retorno, que hoje não há.
Que é que eu posso fazer em Taubaté, terra onde nasci e onde passava as férias, senão chorar junto às sepulturas de toda uma grande família que se extinguiu?
Se é para chorar, choro aqui mesmo, com hora marcada, às nove em ponto. Pelo menos isso me deixa livre o resto do tempo, para rir, cantar e dançar, para celebrar a vida.
Boa noite, vovô! Quando meu trem chegar, espero que ele me leve directo para a estação onde você está, nem que seja só para passar umas férias.
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(escrito há muito tempo atrás)
Ana França Suzuki